Traços da memória afetiva de Josafá Neves

 

A obra de Josafá Neves, hoje celebrando seu jubileu, insere-se no cenário em que emerge com maior visibilidade a afirmação das identidades negras, podendo seguramente constar como uma de suas referências relevantes, ao lado de produções significativas, a exemplo dos trabalhos de Arjan Martins, Ayrson Heráclito, Claudinei Roberto, Eustáquio Neves, Sônia Gomes, entre outros contemplados na exposição intitulada A Nova Mão Afro-Brasileira, ocorrida no Museu Afro Brasil em 2013, sob curadoria de Emanoel Araújo.

Nesse sentido, a mostra Traços de memória, composta por 365 desenhos que passeiam por  diferentes insights, revela um incansável artista que busca destacar a força dos grafismos na  fundamentação da sua obra. O seu processo criativo é marcado por uma impressionante  disciplina. A partir dela, Josafá realiza uma produção diária capaz de fomentar projetos destinados à execução em diferentes mídias, vide sua gravura, pintura e escultura. Tal qual  um cronista da vida contemporânea, ele assume a responsabilidade de execução da tarefa de representar visualmente suas memórias cotidianas. 

Este conjunto de desenhos, ora disponibilizados ao grande público, é a demonstração nítida  de que o ofício do artista nasce, sobretudo, da atividade laboriosa rotineira e exaustiva, sem a qual torna-se improvável o êxito da criação. Os desenhos aqui expostos são frutos desse  labor. Com seu gesto, Neves nos presenteia de modo pedagógico, pois enganam-se as  pessoas que ainda acreditam no desenvolvimento das potencialidades humanas como algo que aconteça por saltos, menosprezando o contínuo e extenuante processo de aquisição do conhecimento.

O caderno de desenhos, cujas técnicas aplicadas são basicamente carvão sobre papel de gramatura mais densa, adquire a força das epifanias, percepções intuitivas que fomentam e aguçam o processo criativo. O artista dialoga com o universo das culturas negras, ao passo  que generosamente busca interfaces com o mundo dos povos indígenas. Na construção de  sua poética visual, há espaço inclusive para algumas alusões a referências humanistas das  culturas ocidentais. Tudo está cuidadosamente situado no âmbito de sua memória afetiva. 

Neves, que ora celebra seus 52 anos brindando-nos com uma mostra profícua, nasceu no Gama, região administrativa do Distrito Federal. Ele partiu da periferia de Brasília para conquistar o mundo. Uma nova referência da arte afro-brasileira surgida no Planalto Central. Não bastasse tamanha responsabilidade, o artista corajosamente assume-se autodidata, participando do circuito das artes que, de alguma forma, reflete um clima tenso por conta da ênfase dada à formação acadêmica, em detrimento de produções que ocorrem extramuros da universidade. Nada surpreendente, pois, se considerarmos o fato de que nossa sociedade, dividida em classes, não se livrou das hierarquias culturais, apesar dos reconhecidos esforços de determinadas instituições em resposta às demandas dos movimentos sociais.

Dono de uma criação que se sustenta sobretudo, mas não exclusivamente, nos saberes de  matrizes africanas, este artista visual vem conquistando reconhecimento na cena  contemporânea com uma obra imersa nas questões étnico-raciais. Seu trabalho é parte de  um movimento que agrega outras tantas produções artísticas, em uma ousada perspectiva que contribui para a desconstrução da História da Arte mainstream. 

Josafá Neves é filho de Exu, orixá da comunicação que permite a conexão entre o Àiyé (a  terra) e o Orun (o mundo sobrenatural); em outras palavras, o responsável pelo contato entre  os seres humanos e as divindades do universo iorubano. Exu também representa as rupturas  das aparências insustentáveis na busca do que é essencial, entre outras atribuições. Coube a Neves seguir um odu (caminho) que dele exigirá o domínio de algumas habilidades características de seu orixá.

Que a produção desse artista possa continuar acessível ao grande público, quer de esboços, quer de trabalhos deles resultantes falemos, tomando como ponto de partida os seus desenhos cotidianos. Quiçá ela também seja capaz de causar abalos necessários, fissuras, fraturas, cisões à maneira de Exu, a fim de que possamos compreender cada vez mais a importância de um ativismo negro no campo das artes visuais.

 

Nelson Fernando Inocêncio da Silva